PARTICIPAÇÃO POLÍTICA – DA EXCEÇÃO À BANALIZAÇÃO
DA FALTA À FALTA DA FALTA
FABRÍCIO ARAÚJO, 2012
É verdade que nas
sociedades de Sócrates e Platão a cidadania era um privilégio dado aos jovens
nobres, homens puros e limpos, não escravos e sem compromissos financeiros, ou
seja, livres para as atividades matinais do pensamento político na Ágora.
Porém, desta experiência nasceu o conceito de participação e o conhecimento de
que somente com participação é possível se alcançar a cidadania. Fazer parte
daqueles que se reuniam para discutir as coisas da vida, dos homens e da polis,
era o exercício fundamental para se compreender quem eram os cidadãos, ou os
indivíduos dignos deste título.
Porém as relações
humanas seguem sempre um caminho ascendente, evoluindo de forma a se ampliar,
generalizar, humanizar e universalizar. A cidadania passou a constituir num
valor universal bem quisto e perseguido por todos. Nos governos totalitários,
ditaduras, Estados de exceção a cidadania é ferida nos seus princípios mais
básicos: valor democrático e liberdade. Desde a experiência clássica a
liberdade é um elemento fundamental para que um indivíduo obtenha de fato a
cidadania. A participação nos espaços de discussão e deliberação popular só se
viabiliza pela liberdade, incluindo a emancipação econômica preconizada pelo Velho Marx.
A conquista da
cidadania, liberdade e democracia universal é um advento das sociedades
modernas. A luta pelos direitos civis, sociais, políticos e humanos enfrentou a
ira e a tirania de governos ditatoriais. A cidadania neste contexto passou a
ser um tesouro perseguido com bravura por militantes idealistas da democracia,
que enfrentaram exércitos, policia de Estado, tortura, exílios, sequestros e
mortes. Mesmo no regime de exceção, de negação da liberdade de expressão, de
organização, de representação e de participação os movimentos sociais se
organizaram para a luta contra as ditaduras. No Brasil estudantes, classe
artística, mulheres e trabalhadores deram a vida pela causa da cidadania. Os
direitos de ir e vir, de votar e de ser votado, de se expressar, de se
organizar politicamente, de emitir opinião publicamente. Eram os objetos da existência dos cidadãos
escamoteados pelo regime autoritário, a causa de vida dos militantes da
democracia.
As ditaduras militares
utilizaram da força física para impor seu poder e sua hegemonia aos povos
dominados. O uso legítimo e exclusivo da força física é elemento constituinte
de um Estado, segundo Max Weber. Porém Pierre Bourdieau nos mostrou outra forma
de poder que o Estado conquista legitimamente seu uso hegemônico, o poder
ideológico. Para Marx, ideologia é o instrumento pelo qual a classe dominante
dissemina seu ideário à sociedade, conquistando desta forma a hegemonia pela
cultura, pela sociabilidade, pela manipulação do pensamento da massa, com a
naturalização dos fenômenos sociais como desigualdade, pobreza e miséria. O
aparelho do Estado burguês age de forma determinante e anterior à formação da
consciência dos indivíduos adequando-os ao ideal do sistema capitalista. A massa
entrega-se à exploração do seu trabalho pelo capital de forma involuntariamente
natural e resignada.
Os fins dos Estados
mantêm-se os mesmos, manutenção do ordem socioeconômica de dominação da classe
burguesa sobre a classe trabalhadora, concentração dos meios de produção nas
mãos da classe dominante, adensamento das riquezas nacionais na elite
capitalistas e extraordinária exploração do trabalho humano a fim do acúmulo de
capital econômico e da produção e comercialização em grande escala, principalmente
internacional, de bens de consumo.
A cidadania nas
sociedades capitalistas é um fetiche. Atribui-se à ela a resignação da condição
precária de vida e ao trabalho de forma inconsciente, desvalorizado,
desregulado, explorador e alienado, alienante e alienador (M. L.
Martineli). Embute-se à cidadania conceitos espirituais como fazer o bem ao
próximo, respeitar os vizinhos e não jogar lixo no chão. A participação
política de forma autodeterminada, como sujeitos emancipados, protagonistas da
própria atuação na sociedade e portadores de direitos, iguais nas
oportunidades, condições e escolhas, como Guillermo O’Donell defende em sua
Teoria Democrática, é banalizada, o Estado oferece uma liberdade tola, sem
nexo, sem sentido, banal, sem direção, sem porque e nem pra que, fazendo com
que os indivíduos se esqueçam dos verdadeiros princípios da cidadania, vivendo
num mundo cuja causa existencial do homem é o consumo de bens materiais, a
busca capitalistas por lucros cada vez maiores e dominação política, social,
econômica e cultural sempre e sempre mais hegemônica, incontestável,
inquestionável e mais importante, invisível a visão humana.
O Estado de Bem Estar
Social, as políticas compensatórias dos Estados contemporâneos, que conseguiram
unir o populismo assistencialista à dominação legal, tradicional, carismática e
ideológica das populações tornam, segundo Pedro Demo, a população em estado de
pobreza política é aquela conformada com seu estado de alienação e de
ignorância. Aquele que é convencida ideologicamente e materialmente a se
desmobilizar, desorganizar, desunir. Aqueles que se isolam, que segundo Mário
Cortella e Renato Janine são o idiotes,
aqueles que renegam a dimensão política da vida e suas vidas se resumem nas
paredes da privacidade.
Vivemos contemporaneamente
o colapso político do excesso da ausência, a falta da falta, segundo Marina
Silva, algo está errado (eu diria muita coisa está) quando ninguém sente falta de nada. Tudo
parece natural, a banalização da vida e a naturalização do estado de opressão e
exploração de uma classe sobre outra torna-se algo culturalmente inquestionável
e invisível. Se nos regimes autoritários os adversários estavam à mostra, no
Estado de dominação cultural e ideológica não, Mario Cortella nos lembra que
“os jovens das ultimas décadas nunca tiveram (nunca enxergaram) um horizonte
adversário, [...] falta-lhes
utopias”. Neste cenário, os governantes e parlamentares, instituídos
representantes do poder e da lógica do capital no aparelho estatal tratam de
banalizar o exercício dos direitos políticos, a fim de causar na população o
sentimento de repulsa aos mesmos.
A curva na história
política do homem, no que diz respeito à questão da cidadania mantém seu
percurso de evolução. Porém, como nos afirmam Cortella e Janine a evolução é o
processo natural da vida humana, que pode em muitas oportunidades representar
uma evolução para óbito. As sociedades que lutaram por cidadania, liberdade e
democracia, perderam-se no curso da história embriagadas pelos ideais e pelas
benesses materiais e imediatistas da lógica do capital. Os povos
marginalizados, excluídos de todos os direitos, dos mais básicos que se possa
imaginar tornaram-se vilões de suas próprias desgraças. Assim o Estado
mostra-se, como a instituição responsável por caçar o direito à cidadania dos
povos, seja pela exclusão nas sociedades clássicas, seja pela repressão dos
estados modernos ou pela manipulação cultural e ideológica na
contemporaneidade. O homem é um ser político, dotado de capacidade racional,
capaz de pensar a organização da vida coletiva de forma justa, democrática,
fraterna e igual para todos. O roubo da capacidade política humana em sua
essência significa o roubo do homem de si mesmo e por si próprio. Estranhar-se
diante do natural, eis a capacidade básica e primitiva do homem que já nos
falta e que é preciso urgentemente recuperarmos.